O Senhor do sábado: tempo de refletir o tempo

E alguns dos fari­seus lhes dis­se­ram: Por que fazeis o que não é líci­to fazer nos sába­dos? E Jesus, res­pon­den­do-lhes, dis­se: Nun­ca les­tes o que fez Davi quan­do teve fome, ele e os que com ele esta­vam? (Lucas 6:2–4).

Cris­to no Cam­po de Tri­go”, por Johan­nes Rapha­el Weh­le (1900)

A tra­di­ção judai­ca e seus rabi­nos rea­li­za­ram, ao lon­go dos sécu­los, pro­fun­das refle­xões e valo­ri­za­ções sobre o sába­do (sha­bat ou shab­bat, em hebrai­co), isto é, o dia de des­can­so e de refle­xão espi­ri­tu­al na vida judai­ca há milê­ni­os. Para alguns intér­pre­tes da Lei, con­tu­do, o sába­do não se refe­re ape­nas a um dia, mas a quem somos; não é sobre o que se faz ou se dei­xa de fazer, mas sobre um tem­po cele­bra­do com a pró­pria vida.

A tra­di­ção cris­tã, que ini­ci­al­men­te com­par­ti­lha­va dos mes­mos cos­tu­mes judai­cos, pre­ser­va­va tam­bém o domin­go para reu­niões nas casas. No sha­bat, todos os judeus dedi­ca­vam tem­po nas sina­go­gas para lei­tu­ra e medi­ta­ção da Torá. Quan­do os judeus se con­ver­ti­am e pas­sa­vam a crer na res­sur­rei­ção de Jesus e no fato de que Ele era o mes­si­as, os espa­ços das sina­go­gas se tor­na­vam hos­tis e poli­ti­ca­men­te ins­tá­veis. Por isso, os judeus cris­tãos pas­sa­ram a dedi­car ain­da mais tem­po ao ensi­no a res­pei­to do que Jesus havia fala­do e inter­pre­ta­do em rela­ção às leis de Deus.

Na inter­pre­ta­ção de Jesus, o sába­do sig­ni­fi­ca o dia em que o homem é cha­ma­do a aban­do­nar todas as con­quis­tas da ação, a dei­xar de lado o tra­ba­lho e a igno­rar o mun­do dos arte­fa­tos. Esse dia, em que o homem deve vol­tar-se para uma exis­tên­cia que não é deter­mi­na­da por coi­sas e se dedi­car à san­ti­da­de no tem­po, não ape­nas bus­ca obje­ti­va­men­te tra­zê-lo aos pri­mór­di­os da cri­a­ção, mas a uma refle­xão sobre sua fini­tu­de, sua depen­dên­cia dian­te da gran­de­za de Deus e da eter­ni­da­de. É o exa­to momen­to em que se bus­ca inten­si­fi­car as rea­ções peran­te o mun­do e se des­co­nec­tar de toda e qual­quer pre­o­cu­pa­ção para se reli­gar ou se reco­nec­tar com o divino.

Na soci­e­da­de con­tem­po­râ­nea, a ace­le­ra­ção do tem­po é evi­den­te, uma vez que as tec­no­lo­gi­as e a bus­ca inces­san­te por conhe­ci­men­to e pro­du­ti­vi­da­de nos dei­xam mui­tas vezes sobre­car­re­ga­dos e, assim, per­de­mos a cone­xão com o rit­mo natu­ral da vida, ou seja, dei­xa­mos de nos conec­tar com a cri­a­ção. Por isso, seja no sába­do para algu­mas reli­giões ou no domin­go para outras, para nós cris­tãos é real­men­te cru­ci­al lem­brar que o tem­po é um pre­sen­te divi­no e que deve­mos usá-lo sabi­a­men­te, pois Jesus é o Senhor do tem­po. E, nes­ta pro­pos­ta de pen­sar­mos a res­pei­to do tem­po, a pró­pria afir­ma­ti­va bíbli­ca nos con­fir­ma que “o Filho do Homem é Senhor até do sába­do” (Lc 6:5).

A pas­sa­gem de Lucas 6, de 1 a 5, não ape­nas nos reve­la a auto­ri­da­de de Jesus ao desa­fi­ar as nor­mas de Seu tem­po para pri­o­ri­zar o bem-estar das pes­so­as; por meio des­se tex­to tam­bém pode­mos e deve­mos refle­tir sobre como ser­mos capa­zes de resis­tir à pres­são da soci­e­da­de de nos­so tem­po com impo­si­ções cons­truí­das e enrai­za­das em dis­cur­sos e falas meri­to­crá­ti­cas e con­cei­tu­ais a res­pei­to de deter­mi­nar o valor das pes­so­as pelo que elas pro­du­zem ou até mes­mo pelo tem­po que dedi­cam à bus­ca de res­pos­tas comer­ci­ais, indus­tri­ais e até mes­mo educacionais.

O tex­to bíbli­co não nos mos­tra Jesus rom­pen­do com o enten­di­men­to do sha­bat; pelo con­trá­rio, a inter­pre­ta­ção de Jesus vai além. Ele até trou­xe aos Seus inqui­si­do­res o exem­plo do rei Davi em rela­ção aos pães da pro­po­si­ção, ou pães da Pre­sen­ça, que ele e outros come­ram dian­te da neces­si­da­de e da fome (como se pode veri­fi­car em 1 Samu­el 21). Naque­le con­tex­to, Jesus res­sig­ni­fi­cou mais uma vez o aces­so à mesa, ou seja, à comi­da e ao pró­prio sagra­do, pois o que seria mais divi­no e sagra­do que aten­der ao necessitado?

Outras pas­sa­gens bíbli­cas vão nos falar sobre o tem­po para o plan­tio e para o cul­ti­vo da ter­ra, para a liber­da­de dos escra­vos e até mes­mo para a recu­pe­ra­ção das pro­pri­e­da­des. O tem­po se mos­tra essen­ci­al nas rela­ções bíbli­cas, e exer­ci­tar o pen­sa­men­to sobre a pau­sa, o des­can­so e o tem­po para a pró­pria refle­xão, bem como para o ser­vi­ço ao pró­xi­mo e para a reco­ne­xão com o sagra­do, é indis­pen­sá­vel para nos­sa saú­de físi­ca, emo­ci­o­nal, men­tal e espiritual.

O desa­fio para nos­sos dias é bus­car o equi­lí­brio entre a velo­ci­da­de fre­né­ti­ca da vida moder­na e a impor­tân­cia de hon­rar o tem­po que nos foi dado por Deus. Nes­te aspec­to, Jesus nos ensi­na que o tem­po de des­can­so não deve ser um far­do, mas um dom para ser apre­ci­a­do. Você deve conhe­cer alguém que não para por nada, que está sem­pre em movi­men­to, que é ati­vo na igre­ja, no tra­ba­lho, na soci­e­da­de e em mui­tos outros luga­res e fun­ções, che­gan­do até mes­mo a evi­tar os perío­dos de féri­as para des­can­sar e a bus­car ser pro­du­ti­vo o tem­po todo. Pois, na mes­ma inten­si­da­de com que bus­ca­mos nos enga­jar em diver­sas ati­vi­da­des para nos ocu­par­mos e para pro­du­zir, deve­mos bus­car manei­ras de abran­dar o rit­mo e reco­nec­tar-nos com a cri­a­ção e com o pró­prio sig­ni­fi­ca­do do tem­po, a fim de encon­trar­mos momen­tos de paz e con­tem­pla­ção em meio à agi­ta­ção do nos­so mundo.

Jesus é o Senhor do sába­do, isto é, do des­can­so, da pro­vi­são e do ser­vi­ço, e nos ensi­nou naque­la pas­sa­gem vali­o­sas lições sobre o tem­po, pois, se havia espi­gas, é por­que já esta­vam pron­tas para colher. Se a neces­si­da­de do outro é laten­te, dei­xe­mos o nos­so “tem­po sagra­do” para aben­çoá-lo e ali­men­tá-lo. Se a soci­e­da­de nos impõe deter­mi­na­do com­por­ta­men­to, refli­ta­mos atra­vés do tem­po sobre onde esta­mos e para onde vamos nes­sa pro­pos­ta de per­ma­ne­cer sem­pre rele­van­tes nos dias de hoje. No Evan­ge­lho de Lucas, vemos como Jesus desa­fi­ou deter­mi­na­dos enten­di­men­tos sobre as nor­mas de Seu tem­po para curar no sába­do, enfa­ti­zan­do que o sába­do foi fei­to para o homem, e não o con­trá­rio. E, por­tan­to, somos con­vi­da­dos a refle­tir a res­pei­to de como temos admi­nis­tra­do nos­so tem­po pes­so­al, fami­li­ar e comu­ni­tá­rio. E, se o pró­prio sha­bat não era sufi­ci­en­te para con­tem­plar o Senhor do sába­do, nós ampli­a­mos esse tem­po para o domin­go, a exem­plo dos pri­mei­ros cris­tãos, a fim de nos sen­tar­mos à mesa e falar­mos des­se Jesus que entre­gou Sua vida por nós. Mas que o domin­go não seja na nos­sa vida ape­nas um dia para ir à igre­ja, e sim um tem­po de qua­li­da­de com Deus.

Nos­so desa­fio é o tem­po para refle­tir como admi­nis­tra­mos nos­so tem­po, e se temos nos dedi­ca­do ape­nas aos afa­ze­res coti­di­a­nos da igre­ja e a ati­vi­da­des mui­tas vezes sem qual­quer pro­pó­si­to evan­ge­lís­ti­co ou de comu­nhão, sem per­ce­ber aque­les que estão à nos­sa vol­ta, neces­si­ta­dos, desam­pa­ra­dos, famin­tos e desa­ni­ma­dos, doen­tes ou até mes­mo sem qual­quer tipo de esperança.

O Senhor do sába­do nos con­vi­da a cele­brar inten­sa­men­te o tem­po. E, quan­do você ler Ecle­si­as­tes 3, que nos fala sobre o tem­po, refli­ta sobre o tex­to até o últi­mo ver­sí­cu­lo, pois ele nos reve­la: “Vi, por­tan­to, que a melhor coi­sa a fazer é ale­grar-se com seu tra­ba­lho. É isso que nos cabe na vida. Nin­guém nos tra­rá de vol­ta para ver o que acon­te­ce depois que mor­rer­mos” (Ec 3:23). É tem­po de refle­tir sobre o tempo.

Que Deus nos aben­çoe e nos for­ta­le­ça para Sua missão!

Semi­na­ris­ta Pau­lo Rober­to L. Almei­da Junior

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