Incompleto, finito, limitado… Mas feliz

O Senhor te porá por cabe­ça e não por cau­da…” (Dt 28.13),

você nas­ceu para ser ven­ce­dor…”, “você domi­na­rá sobre outros…”, são fra­ses cui­da­do­sa­men­te pin­ça­das da bíblia pelos pre­ga­do­res da feli­ci­da­de para apre­sen­tar uma for­ma de vida vito­ri­o­sa e sem per­cal­ços aos seus ouvin­tes. A razão dis­so? Em nos­so meio de fé há uma gran­de difi­cul­da­de em lidar com qual­quer coi­sa que se asse­me­lhe a decep­ção, tra­gé­dia, dor, tris­te­za, ou doen­ça. Então, se cons­trói uma teo­lo­gia de como evi­tar que coi­sas desa­gra­dá­veis nos aconteçam.

No meio de uma comu­ni­da­de de fé nin­guém mais pode estar tris­te, cho­ro­so, refle­xi­vo ou melan­có­li­co, pois vive­mos numa cul­tu­ra cris­tã-hedo­nis­ta, onde ter fé em Deus é a senha para bus­car o pra­zer o tem­po todo, como se isso fos­se pos­sí­vel ou mes­mo sau­dá­vel para a alma. Ven­deu-se a idéia de que cren­te tem de “fun­ci­o­nar” bem em tudo, ser belo, sau­dá­vel, con­tas em dia, qua­li­da­de total, como um boni­to pro­du­to na pra­te­lei­ra. Enquan­to o mun­do pro­cu­ra fór­mu­las mági­cas em livros de auto-aju­da para supri­mir a tris­te­za e ani­qui­lar o vazio, no meio cris­tão sur­giu uma coque­lu­che para par­ti­ci­par de “Encon­tros” que pre­ten­dem ser a pana­céia uni­ver­sal para os pro­ble­mas exis­ten­ci­ais, e pro­me­tem em alguns dias devol­ver uma “nova” pes­soa para a comu­ni­da­de. Engra­ça­do como nin­guém pen­sou em cri­ar encon­tros ensi­nan­do como ser sim­ples­men­te ser­vo (tal­vez por fal­ta de públi­co interessado).

Sem­pre have­rá uma incom­ple­tu­de e cer­ta insa­tis­fa­ção na vida do cris­tão. Nenhum cul­to, nenhum encon­tro da comu­ni­da­de de fé, nenhu­ma pre­ga­ção ou apre­sen­ta­ção musi­cal pode pro­du­zir satis­fa­ção com­ple­ta. Se a saci­e­da­de fos­se total não have­ria o dese­jo de bus­car mais (não con­fun­dir com “ane­do­nia”, que é um dis­túr­bio da alma, uma inca­pa­ci­da­de de sen­tir pra­zer ou satis­fa­ção). O sal­mis­ta, mes­mo conhe­cen­do o Senhor, mes­mo par­ti­lhan­do de Sua inti­mi­da­de, ain­da assim reve­la sua inces­san­te bus­ca: “a minha alma tem sede de Deus”. Ou seja, bebe­mos Dele, mas que­re­mos beber mais.

Se todos vivês­se­mos satis­fei­tos e ple­nos, nin­guém pro­du­zi­ria nada, bas­ta­ria se apro­pri­ar do que já exis­te. O músi­co, o pin­tor, o escri­tor e o poe­ta rea­li­zam suas obras, não por­que têm res­pos­tas, mas por­que têm mui­tos ques­ti­o­na­men­tos. É o mal-estar dian­te do mun­do que nos leva a com­por, a pin­tar e escre­ver, como estou fazen­do ago­ra. Os con­for­ma­dos, os bem-ajus­ta­dos, os ricos, os medro­sos… estes nada que­rem mudar ou fazer – estão tris­te­men­te con­ten­tes em suas medi­o­cri­da­des e con­vic­ções. Mas é jus­ta­men­te a cons­ci­ên­cia que somos imper­fei­tos que nos impul­si­o­na a rea­li­zar algo melhor.

Até a tris­te­za tem o seu lugar na vida: “com a tris­te­za do ros­to se faz melhor o cora­ção” (Ec 7.3). A bíblia tam­bém ensi­na que há tris­te­za para a vida e há tris­te­za para a mor­te (2Co 7.10). Se forem lágri­mas ori­gi­na­das do cora­ção de Deus, essa dor será bem-vin­da, pois leva­rá a alma a bom termo.

Para­do­xal­men­te, tudo que é belo é tris­te, seja um pôr do sol ao entar­de­cer, que é uma metá­fo­ra da vida que se esva­ne­ce, seja a bele­za de uma músi­ca ou de uma flor, por não poder­mos per­pe­tu­ar aque­le momen­to. Fica então com­pre­en­sí­vel para nós quan­do Pau­lo diz que tem o dese­jo de par­tir e estar com Cris­to que é “incom­pa­ra­vel­men­te melhor” (Fp 1.23). E por quê? Ora, ele mes­mo res­pon­de que enquan­to no cor­po, esta­mos “ausen­tes do Senhor” (2Co5.6).

É pre­fe­rí­vel a huma­ni­da­de hesi­tan­te dos que têm dúvi­das aos que esban­jam con­vic­ções. Eu não teria paci­ên­cia em con­ver­sar um minu­to com o “con­vic­to” irmão mais velho do filho pró­di­go, mas me ale­gra­ria em pas­sar horas tro­can­do idéi­as com aque­le jovem cheio de vida.

Tam­bém não que­ro ficar per­to de quem se diz sem­pre feliz e con­ten­te – duvi­do que enten­de­ria minha dor. Recu­so-me tam­bém a ouvir qual­quer pre­ga­dor tele­vi­si­vo: são seres que ven­de­ram a alma e per­de­ram toda humanidade.

Não que­ro papo com cren­tes que fazem da fé um escam­bo com o Eter­no: dá-se uma “noti­nha” pra Deus e, em tro­ca, Ele aten­de o meu desejo.

Num mun­do mar­ca­do por tan­tas injus­ti­ças, não que­ro orar por gen­te que está tris­te por­que ain­da não pos­sui lap-top ou por­que não ganhou o novo Ipod de 160Gigas.

Não que­ro mar­char com mul­ti­dões que depo­si­tam uma fé cega em homens e fazem qual­quer sacri­fí­cio para verem seus ído­los de per­to. Aliás, nem que­ro mar­char, mas andar pelo cami­nho olhan­do as aves do céu e os líri­os do campo.

Feliz­men­te encon­tro no após­to­lo Pau­lo um ombro de luci­dez espi­ri­tu­al onde pos­so me apoi­ar: Se tenho de glo­ri­ar-me, glo­ri­ar-me-ei no que diz res­pei­to à minha fra­que­za (2Co 11.30). Sou incom­ple­to, fini­to, limi­ta­do… mas, não tro­ca­ria de lugar com ninguém.

Pr. Daniel Rocha

Pr. Dani­el Rocha

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