A diferença entre fé e crença

Que nin­guém enga­ne, toda­via, sua pró­pria alma. Deve-se notar cui­da­do­sa­men­te que a fé que não traz arre­pen­di­men­to, amor e todas as boas obras não é aque­la fé cer­ta e viva, mas uma fé mor­ta e dia­bó­li­ca. Por­que mes­mo os demô­ni­os cre­em que Cris­to nas­ceu de uma vir­gem, que ope­rou vári­as espé­ci­es de mila­gre, decla­ran­do-se ver­da­dei­ro Deus; que, para nos­so bem, sofreu a mor­te mais peno­sa, redi­min­do-nos da mor­te eter­na; que res­sus­ci­tou ao ter­cei­ro dia, subiu aos céus e está assen­ta­do à mão direi­ta do Pai, vin­do no fim do mun­do para jul­gar os vivos e os mor­tos. Estes arti­gos de nos­sa fé os demô­ni­os os rece­bem e cre­em em tudo quan­to está escri­to no Velho e no Novo Tes­ta­men­to. E, com toda essa fé, eles não dei­xam de ser demô­ni­os. Per­ma­ne­cem ain­da em sua con­di­ção de per­di­dos, fal­tan­do-lhes jus­ta­men­te a ver­da­dei­ra fé cristã.”

John Wes­ley, em seu Ser­mão nº 2: Os Qua­se Cris­tãos, pro­fe­ri­do em 1741, na Uni­ver­si­da­de de Oxford, no Rei­no Unido

A fé cris­tã não é uma cren­ça cega,
(“A Incre­du­li­da­de de Tomé”, por Matthi­as Stom, 1620)

De acor­do com alguns dos prin­ci­pais dici­o­ná­ri­os bra­si­lei­ros da lín­gua portuguesa:

s.f. 1. no cato­li­cis­mo, a pri­mei­ra das três vir­tu­des teo­lo­gais; 2. con­fi­an­ça abso­lu­ta (em alguém ou em algo); cré­di­to (um homem dig­no de fé); 3. asse­ve­ra­ção, afir­ma­ção, com­pro­va­ção de algum fato […]. Dar por fé. 1. afir­mar como ver­da­de. Dar fé de. tes­ti­fi­car, dar por fé. Fazer fé. 1. ser dig­no de cré­di­to; 2. pres­tar tes­te­mu­nho autên­ti­co. Levar fé (uso infor­mal). acre­di­tar em (alguém ou algo).

Meu jus­to vive­rá pela fé; mas, se vol­tar atrás, não me ale­gra­rá” (Hb 10:38). Nós não pere­ce­mos por vol­tar atrás, mas sal­va­re­mos a vida pela fé. Fé é a con­sis­tên­cia do que se espe­ra, e a pro­va do que não se vê (cf. Hb 11).

Ain­da con­for­me os mes­mos dicionários:

Crer v. t.i. 1. tomar por ver­da­dei­ro; acre­di­tar; 2. ter con­fi­an­ça; 3. presumir(-se), imaginar(-se), julgar(-se). Cren­ça s.f. 1. fato de acre­di­tar-se numa coi­sa ou uma pes­soa; 2. a coi­sa ou a pes­soa em que se acre­di­ta; 3. reli­gião; 4. con­vic­ção profunda.

Ini­ci­al­men­te, mui­tos des­cre­vem a fé como sim­ples dado ou argu­men­to teo­ló­gi­co. Con­tu­do, para o psi­có­lo­go clí­ni­co e pro­fes­sor Josi­as Perei­ra, a fé tam­bém é um fenô­me­no psi­co­ló­gi­co: “Inde­pen­den­te­men­te de qual­quer con­cei­to teo­ló­gi­co, psi­co­ló­gi­co ou filo­só­fi­co, as pes­so­as cre­em e mani­fes­tam a fé das mais vari­a­das for­mas. Mui­tas influ­en­ci­a­das pelo meio, espe­ci­al­men­te seu pró­prio meio ambi­en­te, a demons­tram de for­ma este­re­o­ti­pa­da, e o fazem em fun­ção do apren­di­za­do e das impo­si­ções dos gru­pos aos quais per­ten­cem. Isso ten­de a levar os menos infor­ma­dos a admi­tir que exis­te uni­for­mi­da­de na fé de cer­tos gru­pos, reli­gi­o­sos ou não. Entre­tan­to, obser­va­ções mais cui­da­do­sas, nas quais os aspec­tos indi­vi­du­ais e pes­so­ais são con­si­de­ra­dos, mos­tram-nos outra rea­li­da­de: a fé é um fenô­me­no estri­ta­men­te indi­vi­du­al; é a fé exclu­si­va daque­la deter­mi­na­da pes­soa. Cada pes­soa crê segun­do a sua fé”.

É, por­tan­to, um fenô­me­no psi­co­ló­gi­co. Cada pes­soa é o que é e crê segun­do sua manei­ra de ser. O que é, cer­ta­men­te, con­fir­ma­do pelo notó­rio saber cien­tí­fi­co de que não há no uni­ver­so sequer duas pes­so­as idên­ti­cas, e que tal dife­ren­ça é real e efe­ti­va em todos os aspec­tos da exis­tên­cia huma­na. Por­tan­to, a visão holís­ti­ca e exis­ten­ci­a­lis­ta indi­ca que nin­guém pen­sa ou age da mes­ma for­ma. Todos os seres huma­nos são iguais enquan­to seres essen­ci­ais, mas mui­to dife­ren­tes entre si, enquan­to indi­ví­du­os. Como a fé é a mani­fes­ta­ção do sen­ti­men­to daque­le que crê, ela é a mani­fes­ta­ção do sen­ti­men­to daque­la pes­soa exa­ta­men­te como ela é: é a sua fé.

Do mes­mo ver­bo “crer”, ori­gi­nam-se dois subs­tan­ti­vos que repre­sen­tam ações total­men­te opos­tas: cren­ça e fé. Porém, quan­do que­ro usar uma for­ma ver­bal para expres­sar a minha fé, tenho de usar “crer”, a não ser que esco­lha uma fór­mu­la ain­da menos ade­qua­da: “ter fé”.

A cren­ça pro­vê res­pos­tas a nos­sas per­gun­tas; a fé nun­ca o faz. Quan­do cre­mos, é para encon­trar segu­ran­ça, solu­ção, uma res­pos­ta para os nos­sos ques­ti­o­na­men­tos. As pes­so­as cre­em para desen­vol­ver para si mes­mas um sis­te­ma de cren­ças. A fé (a fé bíbli­ca) é com­ple­ta­men­te dife­ren­te. O pro­pó­si­to da reve­la­ção é fazer com que ouça­mos as per­gun­tas, e não para nos suprir­mos com expli­ca­ções. Sen­do, por­tan­to, a fé um fenô­me­no psi­co­ló­gi­co e per­ten­cen­do à cate­go­ria de valo­res sen­ti­men­tais, para sua efe­ti­va­ção, care­ce de refle­xões raci­o­nais. Sem fé o homem se tor­na irra­ci­o­nal e sem razão ele não pode ter fé. Pois fé sem razão não pas­sa de crendice.

A dis­tin­ção mais útil que encon­trei nes­ta cami­nha­da foi a que esta­be­le­ceu o teó­lo­go e filó­so­fo fran­cês Jac­ques Ellul entre fé e cren­ça: cren­ça é aqui­lo que pro­fes­sa­mos acre­di­tar; é con­teú­do dou­tri­ná­rio pecu­li­ar à nos­sa fac­ção reli­gi­o­sa, expres­so com pala­vras mui­to bem esco­lhi­das em nos­sas decla­ra­ções de fé. Não há, por outro lado, um con­jun­to de pala­vras sufi­ci­en­te para defi­nir ade­qua­da­men­te a fé. Nos­sas cren­ças são pas­sí­veis de expo­si­ção, mas nos­sa fé é uma ques­tão pes­so­al – seu con­teú­do é um mis­té­rio tre­men­do, a ten­são super­fi­ci­al entre o eu e o uni­ver­so, entre o eu e o des­co­nhe­ci­do, entre o eu e o futu­ro, entre o eu e a mor­te, entre o eu e o outro e entre o eu e Deus, pois a pró­pria “cren­ça pode ser um obs­tá­cu­lo à fé, por­que só satis­faz nos­sa neces­si­da­de de religião”.

Nos­sa fé deve ir além do acre­di­tar e focar-se no trans­cen­der. A fé nos dei­xa a sós com um Deus inson­dá­vel; ela nos con­vi­da a um grau de liber­da­de que pode­mos não que­rer expe­ri­men­tar. A fé quer tirar-nos da zona de con­for­to da cren­ça e levar-nos para as regiões mais pro­fun­das do nos­so ser, aon­de os outros não que­rem ir. A fé pres­su­põe a dúvi­da, enquan­to a cren­ça exclui a dúvi­da. A cren­ça expli­ca sen­sa­ta­men­te aqui­lo em que pos­so acre­di­tar e a fé exi­ge que eu prove.

Pas­tor Isra­el A. Rocha

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