Jesus exerceu um fascínio sobre as crianças. Era mais do que ser afável para com elas, Ele compreendia o que era ser um infante, suas lutas, conflitos, impotência diante do mundo adulto dominado por intrigas, violência e incompreensões.
Um dia, essa criança que Jesus tanto preza, cresce, e chega ao mundo adulto depois de vários ritos de passagem. Entretanto, “aquela” criança não se foi, mas continua viva dentro de cada um, sufocada, reprimida, e expressando em novos cenários toda a dor que os primeiros anos de vida trouxeram.
Homens e mulheres que seguiram a Jesus, um dia também, foram crianças e enfrentaram as dificuldades próprias da idade num mundo tão inóspito quanto o nosso. Fazendo um pequeno exercício de imaginação comecei a imaginar como teria sido a infância de alguns personagens a partir de textos das Escrituras que falam de suas características. Afinal, adultos hoje revelam rastros de sua “criança” em palavras, gestos e posturas. Vejamos:
1) Saulinho de Tarso: talvez um menino franzino e doente, que não enxergava bem desde cedo, e que viu nos estudos uma oportunidade de se destacar pois ele mesmo diz que no judaísmo “avantajava-se a muitos da sua idade, sendo extremamente zeloso das tradições de seus pais” (Gl 1.14). Ora, fico imaginando que tipo de garoto – mesmo naquela época – se enfurnaria nos estudos de forma tão açodada se não fosse para fugir de uma realidade desagradável?
2) Joãozinho: o mais jovem dos discípulos, se recostando ao peito do Mestre, expressando a necessidade de tocar e ser tocado, pois quem sabe teve um pai que nunca o abraçou nem o pegou ao colo. Mas, menino sensível como era, precisava sempre de um abraço. Era ele quem se aconchegava a Jesus (Jo 13.23). Já velho, ainda percebemos essa sensibilidade no seu linguajar das epístolas, usando incansavelmente o vocábulo carinhoso de “filhinhos” e “amados”.
3) Pedrinho: temperamento intempestivo, não parava, mexia em tudo, e arrumava confusão com seus irmãos mais novos.
4) Tomezinho: assim como toda criança, depositava a mais completa confiança nos adultos, mas um dia foi humilhado e traído; e ele prometeu a si mesmo nunca mais confiar em ninguém, e desconfiar de tudo aquilo que lhe contam.
5) A mulher “pecadora”: que ungiu os pés de Jesus, chorando e beijando, pode ter sido uma menina criada sem o amor e carinho dos pais, nascendo-lhe um sentimento de desvalor, uma carência de aceitação. Na juventude, muitos rapazes podem ter lhe procurado somente por sua beleza física, e ela nunca soube o que era ter uma relação de amor… daí a necessidade de sentir-se bem quista por todos – nem que fosse por alguns fugazes momentos.
Na verdade a vida desses personagens bíblicos também tem um pouco de nossa história. Eles não eram personagens de ficção, mas homens e mulheres de carne e osso que enfrentavam seus problemas familiares, as doenças, a falta de recursos, assim como nós.
Tudo que foi doloroso na infância, e muito machucou, se torna uma inflamação sempre latejante na alma. Então, machucamos a quem amamos, decepcionamos quem deposita confiança em nós e ferimos os outros com as nossas feridas.
Quem tem ciúmes excessivos explica-se: “temo perder aquilo que amo”; o irascível tem na ponta da língua: “nunca pude falar nada, mas agora chega”; quem se apega ao dinheiro, justifica-se: “passei muita dificuldade na infância”; quem desconfia do mundo: “nunca mais vão me enganar”…
Há um que tem o poder de fazer novas todas as coisas. Deus re-constrói a nossa história a partir do material torto que lhe apresentamos. Não é por acaso que a conversão a Cristo é também chamada de “novo nascimento”. Não é esquecimento ou amnésia do que viveu, mas uma re-significação do que passou e uma oportunidade de viver um novo começo. Não mais os olhos do ódio, da raiva ou vergonha, mas de uma visão sobre a vida a partir do amor de Cristo que sara as feridas, nos restitui a dignidade, e nos liberta da servidão emocional do passado.
Quando me concedo a oportunidade de viver agora tendo Deus como “Abba Pai” – não preciso mais ficar preso a um passado doloroso. Quero ser um adulto vivendo como uma criança diante de Deus, uma criança que pula, dança, festeja, dá gargalhadas, chapinha nas poças d’água, e quando se cansa, corre para o colo do Pai.
Pr. Daniel Rocha