De alguma forma, que não sei explicar, Jesus exercia um fascínio sobre as crianças. Era mais do que ser afável para com elas, Ele compreendia o que era ser um infante, suas lutas, conflitos, impotência diante do mundo adulto dominado por intrigas, violência e incompreensões.
Um dia, essa criança que Jesus tanto preza, cresce, estuda, ama, e é admitida ao mundo adulto através de diversos ritos de passagem. Entretanto, “aquela” criança que existiu continua viva dentro de cada um. Às vezes sufocada, reprimida, outras vezes carente e expressando em novos cenários toda a dor que os primeiros anos de vida trouxeram.
Homens e mulheres que seguiram a Jesus, um dia também, foram crianças e enfrentaram as vicissitudes próprias da idade num mundo tão ou mais inóspito que o nosso. Fazendo um pequeno exercício de imaginação comecei a inferir como teria sido o período de infância de alguns personagens bíblicos, a partir de textos das Escrituras que falam de suas características pessoais. Afinal, adultos deixam rastros de sua criança em palavras, gestos e posturas por onde passam.
O primeiro que me vem à mente é o garoto Saulinho de Tarso. Imagino‑o como um menino franzino e talvez doente, que não enxergava bem desde cedo; acho que desenvolveu um sentimento de inferioridade, mas viu nos estudos uma oportunidade de se destacar, pois ele mesmo diz que no judaísmo “avantajava-se a muitos da sua idade”. Ora, fico imaginando que tipo de garoto – mesmo naquela época – se enfurnaria nos estudos de forma tão açodada se não fosse para esquecer uma realidade desagradável?
Vejo Joãozinho, o mais jovem dos discípulos, se recostando ao peito do Mestre, expressando a necessidade de tocar e ser tocado, pois quem sabe teve um pai que nunca o abraçou nem o pegou ao colo, preocupado com os afazeres diários para sustentar toda a família, e menino sensível como era, precisava sempre de um abraço. Era ele quem se aconchegava a Jesus (Jo 13.23). Já velho, ainda percebemos essa sensibilidade no seu linguajar das epístolas, usando incansavelmente “filhinhos” e “amados”.
Ao contrário do sorumbático João, quantas reprimendas o irrequieto Pedrinho não levou de seus pais, pois não parava, mexia em tudo, e arrumava confusão com seus irmãos com um temperamento intempestivo. E o pequeno Tomé? Assim como toda criança, depositava a mais completa confiança nos adultos, mas um dia foi humilhado e traído; e ele prometeu a si mesmo nunca mais confiar em ninguém, e desconfiar de tudo aquilo que lhe contam.
A mulher “pecadora” que ungiu os pés de Jesus, chorando e beijando, pode ter sido uma menina criada sem o amor e carinho dos pais, nascendo-lhe um sentimento de desvalor, uma carência de aceitação. Para piorar, na juventude muitos rapazes podem ter lhe procurado somente por sua beleza física, e ela nunca soube o que era ter uma relação de amor e companheirismo… daí a necessidade de sentir-se bem quista por todos – nem que fosse por alguns fugazes momentos.
Tudo que foi doloroso na infância torna-se uma inflamação sempre latejante na alma. Então, machucamos a quem amamos, decepcionamos quem deposita confiança em nós e ferimos os outros com as nossas feridas.
Há um que tem o poder de fazer novas todas as cousas. Deus re-constrói a nossa história a partir do material torto que lhe apresentamos. Não é por acaso que a conversão a Cristo é também chamada de “novo nascimento”. Não é esquecimento ou amnésia do que viveu, mas uma re-significação do que passou e uma oportunidade de viver um novo começo. Não mais os olhos da raiva ou vergonha, mas de uma visão sobre a vida a partir do amor de Cristo que sara as feridas, nos restitui a dignidade, traz segurança ao coração e liberta da servidão emocional do passado. É um caminho difícil, pois o atalho, o caminho fácil, é continuar repetindo indefinidamente a doença.
Quando me concedo a oportunidade de viver uma segunda infância – agora tendo Deus como “Aba Pai” – não preciso mais ficar preso a um passado doloroso. Quero ser um adulto vivendo como uma criança diante de Deus, uma criança que pula, dança, festeja, e quando se cansa, corre para o colo do Pai.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
(Alberto Caeiro, em O Guardador de Rebanhos)
Pr. Daniel Rocha