Voltando-se aos pecadores

E elo­gi­ou o Senhor o admi­nis­tra­dor infi­el, por­que se hou­ve­ra ati­la­da­men­te, por­que os filhos do mun­do são mais hábeis na sua pró­pria gera­ção do que os filhos da luz” (Lucas 16:8).

Jesus e os peca­do­res: “Fes­ta de Simão, o Fari­seu”, por Peter Paul Rubens (1620)

É com pesar que leio este ver­sí­cu­lo da comu­ni­da­de de Lucas e escre­vo estas pala­vras, pois des­de o meu nas­ci­men­to fre­quen­to a Igre­ja de Cris­to, jun­ta­men­te com minha famí­lia. Sou pas­tor por voca­ção e meto­dis­ta por convicção.

Quan­do olho, repa­ro que anos se pas­sa­ram e a cada dia me con­ven­ço de como a Igre­ja de Cris­to pre­ci­sa ser rele­van­te, de que pre­ci­sa pas­sar por uma trans­for­ma­ção e, por que não dizer, uma con­ver­são de cami­nho (meta­noia). Pois, ao ana­li­sar essa bre­ve perí­co­pe que nar­ra a pará­bo­la do admi­nis­tra­dor, dois sen­ti­men­tos con­tra­di­tó­ri­os me tomam por com­ple­to: feli­ci­da­de e tris­te­za. Fico feliz por­que os ensi­na­men­tos de Cris­to estão mui­to à fren­te de Sua épo­ca, ou seja, não enve­lhe­ce­ram, não fica­ram nem fica­rão ultra­pas­sa­dos, e a Sua mise­ri­cór­dia se reno­va a cada dia; o que me dei­xa tris­te é que Jesus tem razão: “Os filhos do mun­do são mais hábeis do que os filhos da luz”. Em outras pala­vras, são mais esper­tos e mais sábi­os – lite­ral­men­te melhores.

No ori­gi­nal em gre­go, o ver­sí­cu­lo aci­ma cita­do apre­sen­ta a pala­vra frónimos/fronimostenói, que quer dizer sábio, astu­to, pru­den­te, sagaz, inte­li­gen­te. O que Cris­to decla­ra é que pre­ci­sa­mos apren­der a ser taber­ná­cu­lo (lugar de cul­to, de ado­ra­ção) vivo. Em minha ado­les­cên­cia, encon­trei na igre­ja ami­gos e ami­gas mui­to bem-inten­ci­o­na­dos, mui­tos deles imen­sa­men­te que­ri­dos, assus­ta­do­ra­men­te caren­tes e, mui­tas vezes, opri­mi­dos. Can­tá­va­mos jun­tos, cho­rá­va­mos e nos abra­çá­va­mos debai­xo do mes­mo teto pie­do­so, mas mui­tas vezes ali não esta­va o espí­ri­to de Jesus. Lem­bro-me de que Deus teve mise­ri­cór­dia de mim por alguns anos da minha vida. Nes­se perío­do, conhe­ci peca­do­res dife­ren­tes de nós, que não se entre­ga­vam, como nós da igre­ja, a peca­dos mes­qui­nhos, como a hipo­cri­sia, a men­ti­ra e o orgu­lho. Eles abri­am mão des­se ama­do­ris­mo e mer­gu­lha­vam na coi­sa em si, ou seja, na sem-ver­go­nhi­ce mais vital, sen­so­ri­al e car­nal, o que mui­tos cha­mam de “sexo, dro­gas e rock’n’roll”.

Com­par­ti­lhei o mes­mo recin­to com peca­do­res de ver­da­de, gen­te inde­co­ro­sa, sen­su­al e autoin­dul­gen­te: dro­ga­dos, homos­se­xu­ais, bêba­dos, liber­ti­nos, pros­ti­tu­tas; safa­dos, depra­va­dos, cor­rup­tos e las­ci­vos. Habi­tu­ei-me ao per­fu­me da maco­nha, visi­tei os mais vari­a­dos mocós, vi car­rei­ras de cocaí­na se arma­rem e desa­pa­re­ce­rem. Já obser­vei altos e bai­xos, pre­sen­ci­ei tudo e mais um pou­co nes­ta vida. Fora uma cer­ve­ji­nha e otras cosi­tas, eu me man­ti­ve sóbrio e cas­to duran­te aque­le perío­do da minha vida (as ora­ções de minha mãe me aju­da­ram muito!).

O livro de Atos (pro­va­vel­men­te escri­to por Lucas) e as car­tas do após­to­lo Pau­lo falam de “cris­tãos que tinham tudo em comum” e eram de um só cora­ção. Jesus fala­va de amar os ini­mi­gos, dar a outra face, empres­tar sem espe­rar de vol­ta, ofe­re­cer um ban­que­te a quem não tem como retri­buir. Pau­lo des­cre­ve um mun­do sem pre­con­cei­to de raça, de gêne­ro ou de clas­se soci­al. João, o dis­cí­pu­lo ama­do, des­cre­ve com cla­re­za que “Deus é amor” e que esse amor lan­ça fora todo o medo ou tra­ço de temor.

Esse mun­do que a Bíblia des­cre­ve pou­cos cris­tãos che­gam a expe­ri­men­tar. Esco­lhe­mos defi­nir as coi­sas não pelas qua­li­da­des aci­ma cita­das, mas pelo que mui­tos cha­mam de fru­tos do Espí­ri­to, des­ta­can­do sem­pre o que é nega­ti­vo e para­li­san­te con­tra os outros e con­tra nós mes­mos: a cul­pa, a mes­qui­nhez, a repres­são, a neu­ro­se, a nega­ção e o nii­lis­mo. O mun­do em que todos se acei­tam e se amam, embo­ra faça par­te da nos­sa pre­ga­ção nomi­nal, nos é ater­ro­ri­zan­te por natu­re­za. “A glo­ri­o­sa liber­da­de dos filhos de Deus” não nos inte­res­sa, por­que vive­mos num mun­do de superficialidade.

Enquan­to esti­ve no mun­do, per­ce­bi que as pes­so­as são livres da super­fi­ci­a­li­da­de das igre­jas e da irre­le­vân­cia bur­gue­sa das facul­da­des, um mun­do que se defi­ne na prá­ti­ca, pela acei­ta­ção e pelo amor, e não por meio do dis­cur­so ou da dema­go­gia. Você pode estar se per­gun­tan­do: “No mun­do isso? Duvi­do”. No entan­to, veja alguns exemplos:

  • É gen­te que vive tudo em comum – onde está Mamon (dinhei­ro) sua vitória?
  • É gen­te que igno­ra rótu­los de clas­se, sexo e con­ta ban­cá­ria para se tra­tar como gen­te no sen­ti­do mais fun­da­men­tal da expressão.
  • É gen­te que se recu­sa a ser mani­pu­la­da pelo dese­jo e pelo temor, e o faz entre­gan­do-se a um e man­dan­do às favas o outro.

A comu­nhão que expe­ri­men­tam, eu des­co­bri, não tem limi­tes. Sua gene­ro­si­da­de não espe­ra recom­pen­sa que não no ins­tan­te, e não tem para­le­lo. Os peca­do­res abrem suas por­tas uns aos outros a qual­quer momen­to do dia ou da noi­te; repar­tem sua dro­ga, seu dinhei­ro, sua casa, seu pão, sem nenhum trâ­mi­te ou tran­sa­ção, seja com um irmão ino­por­tu­no, seja com quem aca­ba de tro­pe­çar. Empres­tam gene­ro­sa­men­te, sem espe­rar rece­ber algo de vol­ta. Car­re­gam quem pre­ci­sa ser car­re­ga­do, des­co­lam um tram­po (tra­ba­lho) para quem pre­ci­sa, tiram a cami­sa para quem vomi­tou na pró­pria rou­pa, empres­tam a cha­ve do car­ro para quem não tem onde fumar, pro­vi­den­ci­am o apar­ta­men­to de alguém na praia para o que foi expul­so de casa, repar­tem cus­tos sem chi­ar ou cobrem o tan­que de gaso­li­na. Tra­ba­lham tan­to para os outros como para si mes­mos e aco­lhem com gra­ça incon­di­ci­o­nal; são com­pas­si­vos até para com os que não tole­ram, e mui­tos são lon­gâ­ni­mos com todos que em prin­cí­pio rejei­ta­ri­am. Con­vi­vem sem trau­mas na cons­ci­ên­cia e, o que é apa­vo­ran­te para nós, não que­rem ser melho­res do que nin­guém. Entre os peca­do­res, não tran­si­ta ape­nas a legi­ti­mi­da­de de quem se recu­sa a ter o que escon­der, mas tam­bém um amor que lan­ça fora todo medo.

Gen­te sen­su­a­lis­ta, mas raras vezes deso­nes­ta; autoin­dul­gen­te, mas sem­pre gene­ro­sa; peca­do­ra, mas não pro­se­li­tis­ta. Matam-se, mas o que fazem pelos outros é só res­ga­tar. Mor­rem, mas abra­ça­dos. Não é difí­cil enten­der por que Jesus cur­tia tan­to a com­pa­nhia dos peca­do­res e não escon­dia seu orgu­lho em asso­ci­ar-se a eles. Pois é neles que o espí­ri­to de Jesus sobrevive.

Não estou con­tra a igre­ja nem con­tra a ins­ti­tui­ção. Estou sim­ples­men­te ava­li­an­do o que Jesus quis dizer em rela­ção aos filhos do mun­do e com­pa­rar com as nos­sas ati­tu­des como cris­tãos e cris­tãs. Esta­mos mui­tas vezes pre­o­cu­pa­dos com que car­go vamos assu­mir na igre­ja, qual gru­po de lou­vor toca nes­te domin­go, qual é a linha teo­ló­gi­ca do pas­tor ou da pas­to­ra, se fula­no ou bel­tra­no tem unção ou não… Tan­to orgu­lho, tan­ta hipo­cri­sia, tan­ta men­ti­ra, tan­ta com­pe­ti­ção e, sem per­ce­ber, esque­ce­mos o essen­ci­al. Os ímpi­os, os filhos do mun­do, os das tre­vas estão nos ensi­nan­do o que é a uni­da­de, o que é a comu­nhão, o que é doar-se, o que é ser um ver­da­dei­ro admi­nis­tra­dor do Rei­no de Deus.

Per­do­em-me por dizer, mas, com lágri­mas em meu cora­ção, afir­mo que a igre­ja refor­ma­da pre­ci­sa refor­mar-se, atu­a­li­zar-se, sair dos pro­to­co­los e rótu­los e ir para a fé, sair da mes­mi­ce e ir para a novi­da­de. Somos real­men­te um exér­ci­to que está matan­do seus pró­pri­os sol­da­dos para que as pedras pos­sam clamar.

Jesus Se sen­ta­va com peca­do­res; nós esta­mos fugin­do deles. Jesus ensi­na­va e apren­dia com eles; nós nos pre­o­cu­pa­mos com a orna­men­ta­ção da igre­ja. Cris­to veio bus­car aque­les que estão per­di­dos e nós con­ti­nu­a­mos lan­çan­do péro­las para quem não pre­ci­sa. Jesus Cris­to “taber­na­cu­lou” com os peca­do­res e por isso decla­rou que, mes­mo sem saber, estes pra­ti­cam o amor mútuo. Nós temos a sal­va­ção e temos a teo­ria, mas não exer­ce­mos a prá­ti­ca. Logo, o Senhor irá sem­pre elo­gi­ar o infiel.

Deve­mos, assim como Cris­to, cri­ar taber­ná­cu­los eter­nos e ser total­men­te des­pren­di­dos em gra­ça. “Pois o tes­te­mu­nho de Jesus é o espí­ri­to da pro­fe­cia” (Ap 19:10b).

Ser­vi uns aos outros, cada um con­for­me o dom que rece­beu, como bons des­pen­sei­ros da mul­ti­for­me gra­ça de Deus” (1 Pe 4:10).

Pas­tor Isra­el Alcân­ta­ra da Rocha

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