Cicatrizes no corpo e na alma

Quan­to ao mais, nin­guém me moles­te; por­que eu tra­go no cor­po as mar­cas de Jesus” (Gl 6.17)

Qua­se todos nós car­re­ga­mos mar­cas pelo cor­po. Mui­tas delas são cica­tri­zes vin­das da infân­cia. É pos­sí­vel até con­tar um pou­co de nos­sa his­tó­ria atra­vés delas: a que­da da bici­cle­ta, a quei­ma­du­ra no fogão, o cor­te com a faca, o encon­tro com o ara­me far­pa­do… Alguns mais velhos tra­zem os sinais que a varío­la dei­xou quan­do ain­da não havia vacina.

Mar­cas podem ser cha­ma­das de “estig­mas” (do gr. Stig­ma­ta), como Pau­lo o fez em Gála­tas 6.17, que eram as cica­tri­zes pro­vo­ca­das por tor­tu­ra, ape­dre­ja­men­to, ou fer­ro em bra­sa para mar­car escra­vos e animais.

Assim como as quei­ma­du­ras e os cor­tes dei­xam seus sinais pelo cor­po, é cer­to que a alma tam­bém pos­sui a pro­pri­e­da­de de rece­ber mar­cas, mas ao con­trá­rio do cor­po, que com o pas­sar do tem­po se rege­ne­ra, mui­ta dor cau­sa­da na infân­cia ain­da per­ma­ne­ce viva. São sen­ti­men­tos que se per­pe­tu­am e os anos pare­ce não ate­nu­ar. É como se aque­las cica­tri­zes qui­ses­sem ser nota­das para dize­rem: “olhem o que fize­ram comigo”.

Se a cica­triz só mar­cou o cor­po, tem­pos depois somos capa­zes de rir, pois a dor ficou per­di­da no pas­sa­do, mas se ela atin­giu a alma, qual­quer lem­bran­ça do fato faz des­per­tar todo o deses­pe­ro que cau­sou. E o que é pior: por con­ta da asso­ci­a­ção sim­bó­li­ca, aque­le que feriu adqui­re novos ros­tos, e isso faz com que se con­ti­nue lutan­do con­tra pes­so­as que não foram exa­ta­men­te aque­las que cau­sa­ram a dor.

Con­seqüên­cia: mui­tas opor­tu­ni­da­des são per­di­das com medo de revi­ver a dor de um fra­cas­so pas­sa­do. Outros fecham o seu cora­ção para um rela­ci­o­na­men­to afe­ti­vo para não cor­rer o ris­co de que sejam aban­do­na­dos novamente.

Por que rea­gi­mos assim? É o sen­ti­men­to de ver­go­nha ou humi­lha­ção que não quer ser repe­ti­do. É como se a alma tives­se fei­to um jura­men­to: “nun­ca mais farão isso comi­go outra vez”.

O que fazer com mar­cas tão pro­fun­das? Dê de ombros, viva a vida que Deus lhe deu, olhan­do para a fren­te. Não pre­ci­sa negá-las, ape­nas sai­ba que elas estão ali. Faz par­te de sua his­tó­ria, é ver­da­de, mas não lhes con­ce­da o direi­to de dire­ci­o­ná-lo pelo res­to de seus dias – são pés­si­mas con­se­lhei­ras. Lem­bre-se das mães dizen­do: “Não fique mexen­do na feri­da para não infeccionar”.

Cica­tri­zes apon­tam para lutas, e algu­mas delas levam a mar­ca divi­na. Foi um per­tur­ba­do Jacó que teve no vau de Jabo­que um emba­te que mudou sua his­tó­ria. Depois de uma madru­ga­da de luta dei­xou aque­le ria­cho com um novo nome, mas como nin­guém sai incó­lu­me de um encon­tro com Deus, ele tam­bém foi embo­ra para casa man­que­jan­do duma coxa (Gn 32.31), uma cica­triz que pos­si­vel­men­te levou para o res­to da vida.

Não sei em quais áre­as de sua vida há cica­tri­zes, mas Deus conhe­ce cada peda­ço do seu ser e Ele sabe. Qua­sí­mo­do, o cor­cun­da de Notre Dame iso­la­va-se para não expor suas defor­ma­ções. Escon­der-se e viver defen­si­va­men­te pare­cem ser carac­te­rís­ti­cas comuns de quem se sen­te feri­do. Mas em Cris­to, somos liber­ta­dos des­ses sen­ti­men­tos, e pode­mos dizer como o apóstolo:

Pela gra­ça de Deus, sou o que sou” (1Co 15.10). Com cica­triz e tudo.

Pr. Daniel Rocha

Pr. Dani­el Rocha

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