O Evangelho segundo Joãozinho

Des­con­fio que João­zi­nho, o “autor” do quar­to Evan­ge­lho, era um meni­no que não con­ta­va mais de 10 anos de ida­de quan­do con­vi­veu com Jesus. Pode­mos dedu­zir isso facil­men­te con­si­de­ran­do evi­dên­ci­as exter­nas, tais como a épo­ca esti­ma­da em que o livro foi escri­to (pos­te­ri­or à déca­da de 90 d.C.), e cal­cu­lan­do a ida­de pro­vá­vel do seu autor nes­sa oca­sião: supo­nha­mos 70 anos. Se Jesus exer­ceu seu minis­té­rio públi­co por vol­ta do ano 30, isto é, 60 anos antes da reda­ção do quar­to Evan­ge­lho, pode­mos supor que João tinha mes­mo cer­ca de 10 anos na oca­sião em que acom­pa­nhou Jesus como discípulo.

Mas, além des­se dado cro­no­ló­gi­co, o pró­prio Evan­ge­lho nos ofe­re­ce impor­tan­tes evi­dên­ci­as inter­nas que são ain­da mais con­vin­cen­tes. Veja­mos algumas:

1ª. Evi­dên­cia. Só uma cri­an­ça pode­ria ser o dis­cí­pu­lo amado.

A expres­são “o dis­cí­pu­lo a quem Jesus ama­va” pode ser enten­di­da como “o dis­cí­pu­lo pre­di­le­to de Jesus”. Quan­do hou­ve uma dis­cus­são entre os dis­cí­pu­los acer­ca de qual deles era o mai­or, Jesus cha­mou uma cri­an­ça para o meio e dis­se que o mai­or no Rei­no seria aque­le que se tor­nas­se como cri­an­ça. Des­con­fio que essa cri­an­ça era João, que então pas­sa a ser defi­ni­ti­va­men­te tra­ta­do como um dos doze. Seja como for, Jesus não teria como o “ama­do”, o “pre­di­le­to” ou o “mai­or” alguém que não fos­se como uma criança.

2ª. Evi­dên­cia. Só uma cri­an­ça se acon­che­ga­ria no colo de Jesus duran­te um jantar.

A Ceia acon­te­ceu tar­de da noi­te e, pro­va­vel­men­te, os dis­cí­pu­los esta­vam can­sa­dos. João faz uma coi­sa que somen­te uma cri­an­ça teria a cora­gem de fazer: dei­tar-se para um cochi­lo no colo do mes­tre de cerimô­ni­as. Além do mais, Jesus tinha o cos­tu­me de pegar cri­an­ças no colo e aben­çoá-las. O toque se ins­ta­lou tão for­te­men­te na memó­ria que este foi um epi­só­dio do qual João, mes­mo velhi­nho, ao redi­gir seu Evan­ge­lho, não esque­ceu nem omi­tiu. João con­si­de­rou aque­le um dos fei­tos mais impor­tan­tes de Jesus, e dig­no de ser rela­ta­do no seu Evan­ge­lho. Somen­te as cri­an­ças têm essa liber­da­de para o con­ta­to físi­co sem a cono­ta­ção mali­ci­o­sa dos adul­tos. Ain­da que João tives­se mais de 10 anos, cer­ta­men­te ele era um dos que real­men­te se tor­na­ra como uma criança.

3ª. Evi­dên­cia. Só uma cri­an­ça teria a cora­gem de per­gun­tar e dizer coi­sas tão indiscretas.

Duran­te a Ceia, Jesus dis­se­ra que um dos dis­cí­pu­los o trai­ria (esse epi­só­dio está rela­ta­do no capí­tu­lo 13, a par­tir do ver­so 21). Foi um cons­tran­gi­men­to geral. Os dis­cí­pu­los se entre­o­lha­ram. Pedro, pro­va­vel­men­te a pedi­do dos demais, faz sinal pro João­zi­nho, que esta­va no colo de Jesus, pra que ele fizes­se a per­gun­ta que nin­guém tinha tido cora­gem de fazer: “Senhor, quem é?” (Jo 13:25). A res­pos­ta de Jesus tam­bém é um sinal de que ele esta­va falan­do com uma cri­an­ça, por­que não deu uma res­pos­ta abs­tra­ta, mas uma demons­tra­ção con­cre­ta: “É aque­le a quem eu der o peda­ço de pão molha­do. Tomou, pois, um peda­ço de pão e, tendo‑o molha­do, deu‑o a Judas, filho de Simão Isca­ri­o­tes” (Jo 13:26).

Somen­te João rela­ta alguns epi­só­di­os da vida de Jesus, omi­ti­dos por outros escri­to­res adul­tos. Por exem­plo: João con­ta que Jesus cho­rou; con­ta que Jesus pega­va Seus dis­cí­pu­los no colo; é úni­co a infor­mar que quem ofe­re­ceu os cin­co pães e os dois pei­xes, no epi­só­dio da mul­ti­pli­ca­ção, foi uma cri­an­ça (teria sido ele mes­mo?); con­ta ain­da que esta­va pre­sen­te na cru­ci­fi­ca­ção, jun­ta­men­te com Maria, mãe de Jesus, enquan­to todos os demais dis­cí­pu­los havi­am fugi­do, com medo de ter um fim seme­lhan­te ao do seu Mes­tre. Por que João não fugiu tam­bém? Pro­va­vel­men­te por­que as cri­an­ças, assim como as mulhe­res, não repre­sen­ta­vam gran­de ame­a­ça aos sol­da­dos, ou ao Impé­rio Roma­no, e podi­am ficar ali, sem serem incomodadas.

Nes­sa mes­ma oca­sião, quan­do João esta­va ao pé da cruz, Jesus teria dito a Maria: “Mulher eis aí teu filho”. Depois dis­se ao dis­cí­pu­lo: “Eis aí tua mãe” (Jo 19:26–27). Pode­mos ima­gi­nar que, des­de então, Maria pas­sou a cri­ar João­zi­nho, e que depois João­zi­nho cui­dou de Maria na sua velhice.

Estas me pare­cem ser pro­vas sufi­ci­en­tes para crer que João era um meni­no que não tinha mui­to mais do que 13 anos quan­do Jesus mor­reu. Mas, mes­mo que não fos­se a cri­an­ça que acho que foi, quan­do João resol­veu escre­ver suas memó­ri­as já havia se tor­na­do um ancião. E nada mais pró­xi­mo da infân­cia do que a velhi­ce. O ido­so, à medi­da que se afas­ta da infân­cia físi­ca e cro­no­lo­gi­ca­men­te, fica cada vez mais pró­xi­mo dela men­tal e psi­co­lo­gi­ca­men­te. De um jei­to ou de outro, João era uma criança.

Se isso for assu­mi­do como ver­da­de, o fato de que João era uma cri­an­ça (tan­to faz se de 10 ou de 90 anos), que impli­ca­ções isso traz para a nos­sa lei­tu­ra do Evan­ge­lho e para a nos­sa prá­ti­ca cristã?

Ao que tudo indi­ca, as cri­an­ças não somen­te deve­ri­am ter lugar garan­ti­do na litur­gia e na Ceia como teri­am o direi­to de dor­mir no colo do cele­bran­te. Por isso, os adul­tos deve­ri­am pro­cu­rar inco­mo­dar menos as cri­an­ças duran­te o cul­to. E, em lugar de pedir que sai­am na hora do ser­mão, per­gun­tar se elas não se impor­tam que os adul­tos tam­bém fiquem para ouvir com elas as mara­vi­lho­sas his­tó­ri­as da salvação.

Por Luiz Car­los Ramos,
pas­tor da Igre­ja Meto­dis­ta em Piras­su­nun­ga (SP)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.