Ceia do Senhor, mais que um memorial

(Lc. 22.14–20)

A tra­je­tó­ria da igre­ja cris­tã é com­pos­ta por mui­tas his­tó­ri­as, sím­bo­los e tra­di­ções. Infe­liz­men­te, mui­tos deles têm sido esque­ci­dos ou dei­xa­dos de lado. Isso ocor­re pelo sim­ples des­gas­te do tem­po ou por­que nós mes­mos dei­xa­mos de dar valor aos fatos his­tó­ri­cos, às pes­so­as, aos cos­tu­mes e às prá­ti­cas de nos­sa igre­ja. As igre­jas vão assim dei­xan­do de ter “cara de igreja”.

Mas pior do que dei­xar­mos as tra­di­ções e cos­tu­mes de lado é não viver­mos a essên­cia do que é a igre­ja, ou seja, um espa­ço de comu­nhão, amor e soli­da­ri­e­da­de. Faço uma per­gun­ta a você, irmão ou irmã: quan­tas vezes na vida você já tomou a Ceia do Senhor? Sim, eu sei que é difí­cil res­pon­der a essa per­gun­ta. Sabe­mos que a Ceia do Senhor é um sacra­men­to que sim­bo­li­za o sacri­fí­cio de Jesus Cris­to por nós. Mas, ao par­ti­ci­par­mos des­sa cerimô­nia, quan­tas vezes já para­mos para pen­sar no impor­tan­te sig­ni­fi­ca­do que ela tem?

A Pás­coa cele­bra­da pelos judeus no tem­po de Jesus é para eles, até hoje, um memo­ri­al que relem­bra a saí­da do povo hebreu do cati­vei­ro egíp­cio. Pode­mos per­ce­ber pelo tex­to bíbli­co que Jesus valo­ri­za­va a tra­di­ção, pois pediu a seus dis­cí­pu­los que pre­pa­ras­sem a Ceia Pas­cal. Ele apro­vei­ta o ense­jo da come­mo­ra­ção da Pás­coa, com seu sen­ti­do de liber­ta­ção do cár­ce­re, para lhe atri­buir um novo cará­ter, de trans­for­ma­ção de vidas.

Tal­vez qui­ses­se dar seus últi­mos ensi­na­men­tos aos dis­cí­pu­los sobre como eles deve­ri­am se com­por­tar e exe­cu­tar sua mis­são. Aque­le era, sem dúvi­da, um momen­to cru­ci­al, a últi­ma chan­ce que Jesus teria de ins­truir seus dis­cí­pu­los antes de ser cru­ci­fi­ca­do. Quan­do refle­ti­mos sobre o sig­ni­fi­ca­do de cada ele­men­to que com­põe a Ceia do Senhor, pas­sa­mos a com­pre­en­der quão pro­fun­do e impor­tan­te é esse ato que rea­li­za­mos mensalmente.

Há um ele­men­to na Ceia que é pou­co cita­do, mas que tem mui­to a nos ensi­nar: a mesa. Num dia a dia mar­ca­do por cor­re­ria e agen­das lota­das como o nos­so, sen­tar-se à mesa para fazer uma refei­ção é qua­se um luxo. Den­tro da cul­tu­ra judai­ca, no tem­po de Jesus, nun­ca era per­mi­ti­do que um peca­dor ou impu­ro divi­dis­se a mesa com outras pes­so­as. Já Jesus, nos três anos de seu minis­té­rio, ques­ti­o­na essa res­tri­ção e assu­me uma nova prá­ti­ca. Em dife­ren­tes pas­sa­gens do Evan­ge­lho, pode­mos vê-lo sen­tan­do-se à mesa com peca­do­res e mar­gi­na­li­za­dos, pes­so­as con­si­de­ra­das impu­ras e não mere­ce­do­ras de res­pei­to ou da gra­ça de Deus. Em sua últi­ma refei­ção, Jesus sen­ta-se à mesa com seus dis­cí­pu­los, inclu­si­ve com aque­le que iria traí-lo. Nós, como igre­ja, deve­mos assu­mir esse ensi­na­men­to que a mesa da Ceia nos trans­mi­te: ser um espa­ço que aco­lha todas as pes­so­as, ain­da que sejam peca­do­ras, mar­gi­na­li­za­das ou pen­sem dife­ren­te de nós. A igre­ja deve ser um local onde as pes­so­as pos­sam entrar, sen­tir-se ama­das e rece­ber a pala­vra trans­for­ma­do­ra de vidas.

Já o pão pode sim­bo­li­zar uma série de coi­sas, como, por exem­plo, a soli­da­ri­e­da­de, a par­ti­lha, a divi­são. Na Bíblia, o pão repre­sen­ta mui­tas vezes a pro­vi­são de Deus a seu povo. Pode­mos lem­brar-nos do maná no deser­to e tam­bém da mul­ti­pli­ca­ção dos pães por inter­mé­dio de Jesus. Na noi­te de sua últi­ma ceia, Jesus diz, refe­rin­do-se ao pão: “Isto é o meu cor­po ofe­re­ci­do por vós”. Por­tan­to, quan­do jun­tos nos ali­men­ta­mos do pão, pas­sa­mos a fazer par­te de um só cor­po – o cor­po de Cris­to (cf. 1Co. 10.17). A raiz lati­na da pala­vra “pão” é com panis, que curi­o­sa­men­te tam­bém é a raiz das pala­vras “com­pa­nhia” e “com­pa­nhei­ro”. Ou seja, quan­do come­mos do pão, esta­mos enten­den­do e acei­tan­do o dese­jo de Jesus de ser­mos com­pa­nhei­ros de cami­nha­da, ou um cor­po que se une e reco­nhe­ce seus dife­ren­tes mem­bros e a impor­tân­cia de cada um deles para o cum­pri­men­to da missão.

O ter­cei­ro ele­men­to da Ceia é o vinho. Na ver­da­de, ele nem é cita­do no tex­to bíbli­co, mas pode­mos suben­ten­der que era esse o con­teú­do do cáli­ce de que a Bíblia fala, já que Jesus se refe­re ao fru­to da vinha. Mas não é qual­quer cáli­ce; é o Cáli­ce da Nova Ali­an­ça, que sim­bo­li­za o san­gue de Jesus ver­ti­do na cruz, que des­fez o jugo do peca­do e da mor­te. Assim, não há mais nada que nos con­de­ne ou nos afas­te do amor de Deus, nem a lei, nem a reli­gião, nem coi­sa alguma.

Uma igre­ja que quer rea­li­zar a mis­são de Jesus Cris­to pre­ci­sa viver a dimen­são do per­dão que se mani­fes­tou na cruz. Não cabe a nós acu­sar, jul­gar ou con­de­nar quem quer que seja. Só nos foi dada uma alter­na­ti­va: per­do­ar. Assim como Jesus nos sal­vou por meio de um sacri­fí­cio, pre­ci­sa­mos estar dis­pos­tos a sacri­fi­car nos­so orgu­lho, nos­sa arro­gân­cia e, em mui­tos momen­tos, nos­sa tei­mo­sia, e per­do­ar nos­so próximo.

Pr Tiago Valentim

Com cari­nho e esti­ma pastoral,
Pr. Tia­go Valentin

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